Foto da minha suculenta “mãe de milhares” perfuradinha | Sara de Paula
Nos últimos meses minha atenção tem sido capturada em alguns momentos do dia por um grupo interessante de se observar: as rolinhas do meu pequeno jardim urbano. Com a pandemia e o isolamento social levando muitos de nós para dentro de casa, a mente sentiu necessidade de registrar novos hábitos para substituir as conversas de corredores e outras interações. Quem teve a possibilidade (e privilégio) de ficar em casa, agregou momentos novos à rotina. Uns tem mais tempo com os filhos, outros vista de apartamentos alheios… Eu tenho as rolinhas. Comecei a notar a presença delas de forma mais intensa quando a minha pequena jabuticabeira de vaso deu frutos. Pensei que seriam meus frutos até ser lembrada de que na natureza, o achado não é roubado, literalmente.
Achei por bem colaborar, pois as jabuticabas além de não serem suficientes para todos nós, não durariam por um período tão longo. Inseri potes de água, ração para pássaros e algumas frutas no quintal para que as visitantes não saíssem decepcionadas. Funcionou. Passei a incluir na rotina pré-trabalho o reabastecimento de grãos e de água. Em troca, passei a ser agraciada o dia todo com barulhinhos de asas e cenas engraçadinhas do que hora parecia briga, hora namoro das rolinhas. Claro que os visitantes são diversos. Periquitos, Bem-te-vis, e outros que não reconheço. Porém esses costumam fugir quando apareço, enquanto as rolinhas são mais corajosas, ousadas, e elas provaram isso de diferentes maneiras.
Ocorre que a minha cabeça nunca foi das mais organizadas, e isso só piorou com a quarentena e com a raiva diária que vai brotando ao ouvir os absurdos dos noticiários. Logo, dia desses acabou o alpiste. Noutro dia, até lembrei de comprar o alpiste, mas esqueci de repor. As rolinhas, porém, não deixaram de vir. Vinham, pousavam, olhavam, viravam rapidamente a cabecinha para lá e para cá enquanto pareciam me encarar.
“E o alpiste, dona?”
Não sei se é o que diziam, mas é o que eu ouvia constrangida enquanto tentava dar conta das tarefas. Por vezes pedi desculpas. A princípio imaginei que elas ficavam rondando o vaso de suculentas e os potes de ração vazios apenas para me constranger. No entanto, em uma das regas da manhã olhei assustada para as minhas dezenas de suculentas “mãe-de-milhares” absolutamente perfuradas. Culpei as formigas por um tempo, mas bastou apenas um pouco de atenção para concluir que a arma do crime era obviamente um bico. Muitos bicos, na verdade. As caminhadas não eram protestos pacíficos. Era depredação. E pelo que vi, elas não comem suculentas não. Foi um manifesto escancarado.
Corretas. Eu ocupei o espaço com uma casa, sugeri ter recurso para compensar minha invasão e passei a falhar. Como ouso?
Ultimamente tenho tido mais atenção na reposição, e talvez isso seja resultado do protesto não-pacífico das minhas companheiras. Quero apreciar seus voos, sons, e desfrutar de seu espaço, cultivo e função essencial para equilíbrio do ecossistema sem nada a oferecer? Que tipo de ser humano sou eu? Ah sim… O tipo mais comum. O tipo que responde mais reage diante de perdas, do que à lógica e ao interesse gratuito pelo bem-estar coletivo.
Já há muito não questiono protestos, mesmo que eles envolvam uma depredação aqui ou um incêndio ali. Questiono violência contra vida, mas compreendo o fato de termos gerado uma estrutura desigual, desequilibrada e injusta, que precisa ser revista. Isso exige mais do que abaixo-assinados e notas de repúdio. Exige incômodo real. Ainda que eu tenha pensado em um primeiro momento “rolinhas filhas da mãe”, quando vi minhas preciosas suculentas perfuradas por biquinhos raivosos, precisei de poucos momentos mais para concluir “é… preciso melhorar”.
É um motim!
(ou “A revolução dos bichos”)