Dois meses de quarentena, e um tempo para lidar com a dor

Imagem: Barco entre São Sebastião e Ilhabela, São Paulo | Sara de Paula

Hoje completo dois meses vivenciando a quarentena. Estou trabalhando de casa desde o dia 17 de março, quando a empresa optou pelo home office pelo bem e segurança das pessoas que trabalham lá. No dia dessa decisão, acontecia a primeira morte por Coronavírus no Brasil. Quando eu comecei meu isolamento, tínhamos uma única pessoa morta pelo Covid-19 oficialmente no país. O número total de mortes hoje no Brasil é 16.118. Foram 62 dias até agora, e estou tentando fazer tudo muito certo pelo isolamento social. Minhas saídas consistem em ir ao mercado, ver a família a cada 15 dias acenando do portão, e ir auxiliar a ação social da igreja (duas vezes).

Realmente tenho tentando lidar de uma forma saudável, reconhecendo meus privilégios e sendo grata pela saúde da minha família. Trabalho com o maior foco possível, de dia e um trabalho e de noite em outros, e nas horas livres busco produzir coisas que me alegram. Falei um pouco sobre os exercícios positivos que tenho tentado fazer, aqui nesse post.

No entanto, nesse final de semana dei uma pausa e me permiti um tempo sincero de silêncio e tristeza. Honestamente, mesmo tendo o objetivo de ser útil, de ler sobre tudo o que está acontecendo, e tentar acompanhar as opiniões diferentes sobre o movimento de combate à pandemia no país e no mundo, tem horas em que me sento para assistir uma reportagem sobre o balanço do dia, onde geralmente falam sobre o número de mortos, e uma dor profunda me atravessa. Nessa semana, desabei três vezes e notei que não estava bem. Parei. Chorei. Orei. Me controlei. Mas isso não significa resolver. A opção por uma pausa nos últimos dois dias, com menos notícias e redes sociais, dormir, e ler um livro não relacionado ao caos pelo qual passamos, ajudou um pouco a reduzir a pressão, mas ela não passa.

Eu sei que muitas pessoas ainda pensam que tudo o que está acontecendo é um truque da mídia, e me parece que para outros, beira até o normal. Eu faço parte do grupo que chora quando lê que centenas de famílias perderam alguém que viram crescer ou amadurecer. Foram mais de 16 mil no Brasil e mais de 315 mil mortes no mundo, e entre elas, pessoas que eram companheiros de vida, pais, mães, filhos, tios, primos e amigos de alguém. Como vi em uma projeção em prédios de São Paulo esses dias, “cada um deles era o amor da vida de alguém”. Esse luto coletivo por pessoas que deveriam estar vivas é algo que tenho sentido, sem a opção de não olhar para isso.

Vejo pastores ansiosos por abrir suas igrejas, e hoje, vi duas ou três abertas quando saí de carro. Vejo governantes ansiosos para que o povo volte ao trabalho, e povo ansioso por trabalhar, apoiando o discurso “quem não quer trabalhar que fique em casa”. E eu entendo. Eu entendo o povo, e sei que estão expostos ao discurso perverso de “a economia não pode parar”, e o reproduz com uma certeza absoluta. Falta consciência de classe. Não entendem o papel e responsabilidade do Estado, pois não foi de interesse do Estado que soubessem. Mas os governos e governantes que defendem o fim do isolamento, esses entendem. Os ricos e empresários, entendem. Quem manda o povo trabalhar e finge (sim, finge) que está preocupado com a possibilidade de morrerem do fome, entendem, e não, eles não estão preocupados com a vida. E eu não estou falando aqui do pequeno e médio comerciante, do empreendedor e da base. Eu estou falando dos ricos, que ficam menos ricos quando o povo não trabalha para os sustentar. Eu estou falando da Casa Grande. A esmagadora maioria está na Senzala. A Casa Grande, eu garanto, entende. Entende que vamos morrer aos montes, e nos incentivam a ir.

É esse mal que me causa horror. Esses homens maus precisam pagar agora e pelo resto da história da humanidade, e é nisso que consiste a minha oração pelas autoridades. Ai deles, pois não é por ignorância que agem, mas por ganância.

Ai daqueles que fazem leis injustas, que escrevem decretos opressores,
para privar os pobres dos seus direitos e da justiça os oprimidos do meu povo, fazendo das viúvas sua presa e roubando dos órfãos!
” – Isaías 10:1,2

Hoje decidi escrever sobre isso pois penso que há quem possa se identificar. São os que já tem sofrido, às vezes sem nem ter perdido ninguém. Mas não precisa conhecer nenhum dos que se foram mesmo. Basta ter noção de 16 mil pessoas mortas, e a maioria sem direito ao velório, para sentir o peso que isso tem.

Em contraponto à dor, acho válido lembrar que tem muito material na internet falando sobre como lidar com as emoções nesse tempo para não pirar. Tem muito culto acontecendo, além de transmissões de muitas religiões. Espiritualidade é essencial. Orar, meditar, fazer os rituais e liturgias, mesmo que com adaptações. Afinal, em todo tempo, Deus continua sendo bom. Diante dos homens perversos, Deus continua sendo bom. Na nossa dor e no vale da sombra e da morte, eu sei, Deus continua bom.

Eu termino esse texto com uma longa afirmação que resume o que me sustenta.

Deus acolhe as minhas dores quando tudo, absolutamente tudo, parece dor. É a paz dEle, que excede todo o entendimento, que me encontra nas orações de tristeza, e é o amor dEle, que lança fora todo o medo. Ele vai continuar apaziguando a minha alma. Ainda que os homens perversos vençam por enquanto, eu sei que tenho forças nEle para continuar indo na direção contrária a que eles forem. Deus é bom o tempo todo, e isso inclui esse tempo.

3 comentário em “Dois meses de quarentena, e um tempo para lidar com a dor

  1. Amor, noto a angustia nas suas palavras e sempre que noto que você não está bem, eu lhe abraço demoradamente como se quisesse esconde-la do que te aflige e nem isso podemos fazer hoje.
    Mas olha, só mais um poucochinho de tempo e tudo vai passar, sentiremos muita falta dos que se foram mas estaremos fortalecidos, porque antes ouviamos falar que houve a peste negra, febre amarela..etc não faziamos ideia do que era, agora fazemos, voce é forte, Deus te ama, voce tem o selo da promessa, se dê um tempo com Deus, se encha da graça, isso nos fortalece.
    Te amamos, te admiramos, e oramos por você todos os dias.
    Ps. Em breve vou te apertar e beijar tanto, tanto. Te amo♡

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